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POR SYLVIO AYALA
 
 
Tresloucada bipolaridade
 
 
                     Na terra da dualidade, do ‘GreNal’, de Chimangos e Maragatos, de frios congelantes e sufocantes calores, de esquerdas vermelhas e direitas azuladas, ‘Hoje Sou Hum; Amanhã Outro’ faz todo sentido. Porto Alegre vai ou racha, em um contexto cultural que intercala flashes luminosos com apagões profundos. O espetáculo do Ubando Grupo é desses que pegam fogo, trazendo à lume a verve convulsiva de Qorpo Santo, dramaturgo, poeta, escritor, jornalista, tipógrafo, professor, louco e gaúcho. QS ou José Joaquim de Campos Leão correu pelo século 18, entre Triunfo, Alegrete, recantos do interior do Rio Grande do Sul e a capital, em tempos de Monarquia e previsões de outros Brasis. Inconformista e conservador ao mesmo tempo, sua mania e paixão maior foi ‘tudo escrever’, sistematicamente e alucinadamente, artigos editoriais, confissões, versos, receitas culinárias, máximas, peças de teatro, e até uma ‘ensiqlopédia’ (escrita assim, de acordo com sua própria reforma ortográfica). Destaque para as comédias, onde deita cortante ironia na política, moral, família e ‘bons costumes’ da época, em conturbada visão crítica que permanence atualíssima. O cagaço constante do Chefe Maior do ‘palácio imaginário’ erguido nessa montagem é o mesmo medo dos Donos de Tudo do agora, agarrados aos seus anéis & brioches, em um país (ou seria reino?) onde o povo continua gritando na porta.
                     São paralelos inevitáveis, poucas cenas são tão fidedignas do Brasil de hoje, quanto a figura de um dirigente público todo cagado (literalmente) passando farto talco sobre suas calças. Que melhor retrato imaginar, para tal momento varonil? Que maquiagem e perfumaria esconderá nossos fedores na perseguição do padrão Fifa? Que nação vendemos, e que nação somos de fato? A peça encampada pelo Ubando lança a indagação no ventilador, embalada no texto verborrágico de um autor renegado, maldito, e passados 150 anos de sua trajetória, ainda incompreendido. Provavelmente por esse motivo Qorpo Santo guarde mistérios, sobre sua personalidade polêmica e sobre sua intrincada obra, pouco conhecida até por seus pares do teatro. Parte dessa obra permanece perdida. Foi, talvez prevendo o descaso histórico, que montou sua própria gráfica, onde imprimia ideias e buscava disseminá-las. Empreendedor de si mesmo, autobiográfico, QS bancava suas doidêras visionárias. Tamanha obsessão por seu ofício e ideário levaram sua família a rotulá-lo como doente mental, a interditá-lo. Não aceitavam seu frenético processo criativo, mais fácil taxá-lo de doido. Sua vontade sim foi insana e inabalável, até a morte por tuberculose em 1883. Esse folclore todo alimenta o espetáculo, torna mais potente e válida a iniciativa do grupo, que já nasceu balizado pela pesquisa do ‘doido manso do Guaíba.’           
                     Grupo novo, mas longe de ser novato, o Ubando foi formado em 2012, seus membros vêm da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, o que já indica seu estilo. Mesclam no roteiro a pantomima, a farsa portuguesa, ‘gags’ circenses, o grotesco e o ‘absurdismo’, não à toa, ancoram sua pesquisa (e primeiro empreendimento) no dramaturgo peso pesado que carrega a fama de ser o precursor do Teatro do Absurdo e acreditem, do Surrealismo de Breton. Atacam de ‘patafísica’, linguagem que explora os campos negligenciados pela física e metafísica, buscando explicar o absurdo da existência, ou bagunçar o coreto mais um pouco. Fiel ao texto de QS na íntegra, o diretor Júlio Saraiva consegue síntese e análise no palco, sem perder nada, e sem gordura. A dupla linha de frente Renan Leandro e Aline Ferraz atua com fervor, versáteis na utilização do figurino, dos objetos de cena, e sobretudo das técnicas dramáticas. A peça tem máscaras da ‘commedia dell’arte’, malabares com folhas de papel e até um boneco sombrio que discursa emocionado. Renan encarna a persona fanfarrona do chefe supremo e Aline alterna personagens tão cínicos quanto serviçais, botas e capachos, putos e putas, patriotas e idiotas. Edgar Alves é o terceiro ator e sonoplasta, Guto Basso faz a trilha Sonora, sincronizadíssima com atmosfera e proposta política. “- Ôôôô, o povo acordou, o povo acordou, o povo acordou…” Os brados escutados no início do espetáculo dão o tom, são de verdade, o som das ruas, dos protestos de ontem, de hoje e de amanhã.
                     Em cena, um tanto do estado brasileiro, do ufanismo e da corrupção, do charlatanismo e da inflamação. Quem ali despacha com tanto alvoroço? Quem se apresenta na pele de Seu Mestre Mandou? É o prefeito? É o governador? É a companheira Dilma? É o monarca já deposto? Ou é o patrão que você tem na firma? Pode escolher, seu próprio líder & algoz. Mais uma vez o dualismo, as faces de uma mesma moeda, ‘hum & outro’. O cenário se move, para tudo voltar ao mesmo lugar, em chuvas de documentos e retóricas intermináveis. Celulose e burocracia ao vento, na dança de tudo que precisa ser feito, mas não será. ‘Porrada, porrada! Nos caras que não fazem nada!’, cantaria o Titãs, em sua fase mais punk. Mas o clima tá mais pra Carmem Miranda, salada de frutas na cabeça, barbitúricos e balangandãs. As figuras ali são mesmo carnavalescas, tal qual perfeitos Mestre salas & Porta Bandeiras, trançando passos em torno de uma país cambaleante. Evoluem a coreografia do desterro, da subserviência, do peculato, do caixa 2, e da violação dos direitos humanos. Portanto, sintonizados com a realidade do país. Abram alas, e cuidado com as carteiras.
                     Bengala anárquica girando, ora cetro, ora vara de pescar, o Chefe Supremo executa seu gestual, seu ritual falsário, entrincheirado em gabinete, castelo e prisão. O expediente é imenso… vigilância de fronteiras, preservação de divisas, combate ao terrorismo, defesa da tradição, família e propriedade. Ufa! Em tempos de hábeis Dirceus e Azeredos, eis a antiga arte de burlar a res pública. A plebe na peça só aparece em projeções, devidamente aniquilada. Creio que Qorpo Santo curtiria o trabalho do coletivo de atores Ubando, se pudesse vê-lo, se enxergaria na parada, como tanto gostava. Quem sabe, não se assumise como Sátrapa Absurdista da República do Porto Quase Alegre, esse lugar surreal capaz de iniciativas arrojadas e reacionarismos velhacos, concomitantemente. Da vanguarda pra retaguarda, apenas um pulinho, um piscar. “Hoje Sou Hum; Amanhã Outro.”





 

 

                                Por Leandro Nunes

 

                          “Os gaúchos são bairristas!”. 

 

 

Eis é a frase do ano. Diante do recente episódio no qual a torcedora gremista foi flagrada gritando “Ma-ca-co!” para o goleiro Aranha, do Santos, os debates sobre preconceito e xenofobia e a exploração da imagem da jovem tomaram conta dos canais e cadernos esportivos no País. Para tanto, a origem desses conflitos podem dar pistas e remontar algumas explicações há uns 150 anos, e que pode justificar, ou não, a cultura de preconceito que incita o Brasil como inimigo do Rio Grande do Sul, e vice-versa.

A frase no início do texto vem à mente, de alguma forma, quando um brasileiro visita o Sul do País. Porto Alegre escolheu manter viva e reviver sua memória, seja por meio dos monumentos nas ruas, no chimarrão, nas bandeiras espalhadas ou no engrandecimento de figuras importantes na história, como políticos e artistas. Este último pode ocorrer por meio da produção de reportagens históricas, exposições de fotografias e documentos, e a preservação de locais importantes, como se dá na Casa de Cultura Mário Quintana, que resguarda o local da antiga moradia do escritor e ainda reserva um espaço especial de arquivo histórico da cantora Elis Regina. Ainda que seja algo necessário e importante de se realizar, dada a importância das figuras e a potência de suas obras, esses espaços parecem marcar presença intelectualmente na vida dos gaúchos, muito mais em uma comparação rasa com a cidade de São Paulo, por exemplo.

Mas não é para defendê-los que o RA-TO-LE-TRA-DO escreve. É necessário resgatar alguma parte da História que ajude a explicar o que acontece entre nós. E mais uma vez, é preciso reconhecer, os gaúchos sabem fazer isso muito bem. Na lista de exemplos, está presente o trabalho do Ubando Grupo e seu primeiro espetáculo. Desde janeiro a cia segue em cartaz com a montagemHoje Sou Hum, Amanhã Outro, do poeta, jornalista e dramaturgo (gaúcho) José Joaquim Campos Leão (1829-1883), autodenominado Qorpo Santo.

O texto remonta o período da Guerra do Paraguai (1864-1870) que rendeu ao país mais de 300 mil mortos, além da destruição e embargos econômicos. Do outro lado do campo de batalha, brasileiros, argentinos e uruguaios perderam mais de 50% das tropas, além de civis. Na montagem farsesca, o grupo apresenta um rei inseguro que está temeroso por conspirações dentro de seu governo. Ironicamente, a majestade é enganada pelo seu próprio ministro. Dentro do jogo político, o tal ministro compreende que não precisa derrubar o rei, mas posicioná-lo convenientemente. Funciona como um realpolitik praticado por um mestre de natureza camaleônica.

Como resultado satisfatório, tudo muda, para que nada mude. O preço é pago em sangue, e os vencedores entoam cantos ao ritmo da música “Show das Poderosas”. Para justificar tantas perdas é preciso calar os que restaram. A solução? Elencar-se “profeta” e conceder pequenos poderes aos sobreviventes. Diga-se que há um tanto de bairrismo nos pequenos poderes. Exemplos nacionais de juízes que não admitem multas por se sentirem acima das leis ou empresários que transferem infrações de trânsito para amigos que não dirigem são rotineiros. Isso acontece no Sul, no Sudeste e no Brasil inteiro. Assim, o grupo revive no passado da obra de Qorpo Santo, o presente das nossas discussões. E não diz respeito ao quanto macacos e gremistas são diferentes, ou que corintianos são bandidos e são paulinos viados, os “invólucros de espíritos”, mas o quanto dói se reconhecer igual. Dói e mata.Quanto ao uso pejorativo da palavra “bairrista”, eu trocaria por algo mais elogioso e necessário aos nossos dias: Monomania histórica.

 

 

Publicado em 10/11/14  http://ratoletrado.wordpress.com/2014/11/10/artigo-o-bairrismo-dos-gauchos-e-o-teatro-em-porto-alegre/#more-1335

 

 

Críticas

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